Caso de Orquestra : Um espirro em Mozart
Poucas aberturas tem idéias melódicas tão felizes e vibrantes como ‘As Bodas de Figaro’ de Mozart. Agilidade e simetria apresentadas por um desenho que todas as cordas executam em semicolcheias, ornamentando o acorde da tonalidade da obra: Ré Maior. Tudo com uma lógica de discurso impecável — não dá para tirar uma nota, parece Caymmi.
De repente, um espirro. Isso mesmo, uma fatalidade, alguém espirrou bem na hora da breve pausa entre uma frase e outra. Os músicos, mesmo ocupados em executar dedilhados e arcadas precisas, se entreolharam para descobrir de onde havia partido o ruído intruso.
Vinha do lado dos segundos violinos, aquela seção que fica à esquerda do spalla, o violino principal, e ao mirar o maestro com o canto do olho — arte que define um bom músico de orquestra —, todos perceberam que as bochechas tremelicantes do famoso regente estavam mais tremelicantes que nunca.
Poderia aqui abrir um parêntesis para instituir um concurso de adivinhação — qual o maestro brasileiro de bochechas mais tremelicantes? — e teríamos que discutir e entender a função e os diversos tipos de estertores expressivos dos titulares da batuta, que vão desde os meneios de cabeça, os ricolchetes de cabeleira, os tremeliques de braço, até certas coreografias pouco ortodoxas de pança e quadris.
Os próprios músicos, que em geral amam e odeiam seus maestros, lembram que nos ensaios diários, a ocorrências dos tais tremeliques chega praticamente a zero. Pra que servem então, são apenas jogo de cena? Outros, por sua vez, reconhecem que durante a performance a música invade o maestro, e seu corpo simplesmente responde ao enfrentamento, para encantamento de todos.
De acordo com Herbert Brün, um saudoso provocador de pensamentos sobre música, a regência ideal seria quase invisível, deixando ao ouvido a possibilidade de se surpreender com as mudanças de intensidade e andamento. Do jeito que os maestros abrem os braços uma fração de segundo antes do evento sonoro, a platéia acaba sendo avisada ‘visualmente’ do que vai ocorrer na peça. Lamentável, dizia ele.
Quem, todavia, vai conseguir levar o maestro a desistir de ser uma celebridade visual que se emociona com a música?
Mas voltando ao espirro, havia uma boa razão para aqueles tremeliques de bochecha do maestro. Do alto do pódio, podia ver com clareza, assim como o público, que não se tratava apenas de uma simples ocorrência. Junto com o espirro, num mesmo jato, havia pulado uma vistosa dentadura, que agora brilhava vermelha e molhada no solo sagrado da sala de concerto, para desespero de todos — maestro, músicos e público.
Agora que a abertura desviava para tonalidades próximas num esboço de desenvolvimento, mesclando menor e maior com toda a graça mozartiana, a dentadura se oferecia como espetáculo alternativo, ou como releitura pós-moderna, para a curiosidade das primeiras filas, que já cochichavam aqui e ali sobre o desconserto.
Mas quem era o espirrante? Como já dissemos era um bravo membro do naipe dos segundos violinos, ‘Gato’, como era carinhosamente chamado pelos amigos Florisvaldo e Vivaldo Conceição. Gato tinha essa mania de espirrar com espalhafato, abrindo braços e pernas para aumentar o efeito. Sem pensar, fez isso no meio do concerto, e deu no que deu. O constrangimento crescia a cada compasso.
Imagine como deve ser difícil para um maestro se concentrar na interpretação de Mozart tendo uma dentadura vermelha e vistosa bem perto do pódio, a desafiar suas escolhas de fraseado. Gato fez de conta que nada havia acontecido, continuou tocando seu violino e parecendo o mais inocente dos mortais.
Como essa estratégia aparentemente não estava dando certo, já que os olhares se intensificaram em sua direção, o violinista mudou de rumo, e lá pelo meio da peça desembainhou o arco e foi esticando-o no chão para ver se conseguia puxar a dentadura de volta, para perto de si.
Depois de algumas tentativas, acompanhadas com espanto por todos, a ponta do arco conseguiu puxar a dentadura escandalosa. Ela foi inicialmente arrastada pelo chão da sala, e quando estava bem perto de sua cadeira, entre acordes e golpes de arco da vizinhança, foi fisgada pela ponta do arco. Rápido como quem rouba, Gato pegou a dentadura com a mão esquerda (o violino ficara no colo) e colocou sem cerimônia em seu lugar de origem.
Foi uma mistura de escândalo e de alívio geral. A situação havia sido resolvida, deixando espaço para que músicos, maestro e ouvintes curtissem adequadamente o que sobrou das Bodas de Figaro. Salvo enganos e ‘meras coincidências’, tudo isso aconteceu de verdade na Cidade da Bahia, aí por meados do século passado.
( por Paulo Costa Lima )