Rabeca - Não é um Violino


Apesar de eu não ser músico, a música sempre fez parte de minha vida. Cresci entre músicos e muitos instrumentos. Fui o único de quatro irmãos que não seguiu profissionalmente nesta carreira. Mas mesmo assim, para não fugir às origens, contribuo com minha desafinada presença em um pequeno coral de minha igreja (Johrei Center de Vila Isabel - Igreja Messiânica).
Nestes últimos tempos tenho me encantado com a arte e o som das violas caipiras e rabecas. Por isso gostaria de dar minha primeira contribuição com um artigo sobre a Rabeca que saiu na revista "Raiz - Cultura do Brasil" que achei bem interessante. Espero que gostem.
Marcos Cavalcante



RABECA - NÃO É UM VIOLINO

Um instrumento que pode ter três, quatro ou seis cordas. Que pode variar de formato, de tamanho, de afinação. E que se espalhou por todos os cantos do Brasil. Conheça a rabeca.

O CORPO DO INSTRUMENTO é rústico, um pouco áspero ao toque. O arco pode vir na madeira crua mesmo, sem verniz. O som é agudo, arranhado, sujo. E era exatamente essa a intenção de quem o construiu.
“Esse é o colorido especial da rabeca”, diz Sérgio Roberto Veloso de Oliveira, o músico pernambucano Siba, ex-vocalista da banda Mestre Ambrósio, hoje em carreira solo. “Um tocador de violino passa anos aprendendo a limpar os timbres, mas o rabequeiro não limpa, está mais preocupado com a pancada do braço, o ritmo, os sons rasgados."
Como Siba, a grande maioria dos rabequeiros faz questão de desmentir a aparente superioridade do violino sobre a rabeca, argumentando que ambos têm suas potencialidades. E defendem, entusiasmados, a autonomia de uma em relação ao outro:
“A rabeca é um instrumento. Não é uma imitação de instrumento, não é um violino mal acabado. Ela é outro instrumento”, dizia o músico e professor de rítmica da Unicamp José Eduardo Gramani. Em 1995 Gramani deu início a uma pesquisa que o levou a documentar o processo de construção de quatro luthiers brasileiros: Martinho dos Santos (Morretes, Paraná), Julio Pereira (Paranaguá, Paraná), Arão Barbosa (Iguape, São Paulo) e Nelson dos Santos, conhecido como Nelson da Rabeca (Marechal Deodoro, Alagoas). Mas Gramani veio a falecer antes de escrever sobre o material coletado, e coube à sua filha, Daniella Gramani, concluir o trabalho, organizando a edição do livro Rabeca, o som inesperado (2002) a partir dos registros fotográficos e entrevistas feitas pelo pai.
Do contraste entre a ausência de regras da rabeca e a exatidão no tocar e no construir um violino, nasceu provavelmente a idéia de que este último seria superior. Além disso, a rabeca como um “violino mal acabado” é uma noção diretamente associada à outra, a de que ela é instrumento das classes mais pobres.
Ambas têm um fundo de verdade, que remonta à origem da rabeca.
SEU APARECIMENTO teria sido anterior à produção dos textos bíblicos, tendo existido em todas as grandes civilizações da Ásia e da África, em algum momento de suas histórias, um pequeno instrumento de cordas tocado por um arco.
A rabeca teria viajado até a Europa, durante a dominação dos mouros, onde se tornaria bastante apreciada nas mãos dos menestréis medievais. Mas com o surgimento das primeiras cidades e a profissionalização dos mestres-artesãos, um novo instrumento apareceria, provavelmente na Itália, para roubar da rabeca as atenções da nobreza: o violino. Era essencialmente o mesmo instrumento, só que construído com uma técnica e ferramentas mais precisas, e com um acabamento perfeito, o que terminava produzindo o timbre limpo e uma execução mais rica em recursos musicais. Contudo, nas aldeias distantes dos centros urbanos, entre a população de menor poder aquisitivo, as rabecas continuariam a ser produzidas como antes, com processos artesanais mais rústicos.
Tornou-se, então, instrumento dos pobres.
“É, além do mais, dos instrumentos típicos dos cegos e pedintes urbanos”, define o livro Instrumentos musicais populares portugueses, de Ernesto de Oliveira e Benjamin Pereira (Ed. Gulbenkian, 2000). E ao cruzar o Atlântico, os portugueses trouxeram essa segmentação: “Rabeca é como chamam ao violino os homens do povo no Brasil”, diria Mário de Andrade no seu Dicionário musical brasileiro. Também José Eduardo Gramani havia notado, em sua pesquisa, que a rabeca era o único instrumento da “música folclórica” (sic) que não encontrou espaço na “música popular” (sic) brasileira.
Restrita como fosse às festas populares e religiosas, a rabeca teve força para se espalhar pelo Brasil, tendo se adaptado à cultura de cada região, dos fandangos paranaenses até os cavalos-marinhos pernambucanos, passando por reisados de Minas Gerais. Mas mesmo a barreira do mainstream já tem sido cruzada, com o trabalho de artistas como o mestre Salustiano ou Antônio Carlos da Nóbrega, que trazem notoriedade para o som rasgado do instrumento.
O fato é que para os próprios luthiers, a rabeca nunca precisou de um aval erudito para se legitimar. Sentem orgulho justamente em deter uma sabedoria distinta, um vocabulário específico (veja a página ao lado), um conhecimento que aprenderam da observação dos mestres e das próprias experimentações:
“Já tentei usar [madeira de] de mangueira, de cajueiro”, lembra Salustiano. “Hoje uso muito jenipapo, que é uma madeira idealista para isso. Tem gente que usa caxeta, pinho virado. Mandacaru também faz boa rabeca, se a gente usar junto com outra madeira, como o pinho faia, o cedro, a imburana-de-cheiro, a praíba.”
O alagoano Nelson da Rabeca, autodidata como todos, é outro afeito a experiências. É dele a rabeca mostrada na foto ao lado, que tem uma característica marcante: a ausência de laterais entre o fundo e o tampo. Para conseguir essa forma única, Nelson constrói sua rabeca a partir de um bloco maciço de madeira, que já entalha arredondado para depois cortar ao meio e desbastar o interior de cada metade. A solução torna o processo mais rápido e o instrumento mais resistente, já que conta com menos partes coladas.
Como observou o músico Luiz Fiaminghi, que colaborou com o projeto de Daniella Gramani para editar a pesquisa do pai: “Sem ter consciência, seu Nelson reinventou uma maneira medieval de construir instrumentos de corda com arco”. O luthier alagoano experimentou o novo, e ao experimentar encontrou a ancestralidade.
E é por exemplos como o de Nelson que José Eduardo Gramani, em sua pesquisa, dizia: “O fato de não existirem regras para a construção das rabecas possibilita que haja uma contínua motivação, que impulsiona o construtor no seu trabalho, o músico no seu fazer e ainda o ouvinte que usufrui a música”.


Texto extraído da revista Raiz – Cultura do Brasil